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TEXTO I
Às vezes, no silêncio da noite, eu fico imaginando: que graça teria a vida sem música? Sem ela, não há paz, não há beleza. Nos dias de festa e nas madrugadas de pranto, nas trilhas dos filmes e nas corridas no parque, o que seria de nós sem as canções que enfeitam o cotidiano com ritmo e verso? Quem nunca curou uma dor de cotovelo dançando lambada ou terminou de se afundar ouvindo sertanejo sofrência? Quantos já criticaram funk e fecharam a noite descendo até o chão? Que atire o primeiro vinil quem jamais caiu na contradição de dizer que odeia rock e cantarolar “We are the champions”, no chuveiro, após ser promovido. Tudo bem… Raul nos ensinou que é preferível ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
Já somos castigados com o peso das tragédias, o barulho das buzinas, os ruídos dos conflitos. Ao menos com a música, não tenhamos amarras — porque ela salva. Tem hora que a gente desanima. Há momentos que são como um bandolim desafinado e aí é um chorinho atrás do outro. É pau, é pedra, é o fim do caminho. Há uma nuvem de lágrimas sobre os olhos, você está na lanterna dos afogados, coração despedaçado, sociedade em frangalhos e vem o pensamento: “inútil, a gente somos inútil”. Assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade. Na sarjeta da emoção, dá vontade de gritar: “eu não sou cachorro, não!” Mas como um sopro, da janela do vizinho, entra o samba que reanima a mente. Floresce do fundo do nosso quintal a batida que ressuscita o ânimo, sintoniza a alegria e equaliza o fôlego. Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima. Recupera a fé e diz: “I will survive”.
Ouça-me bem, preste atenção: o mundo é um moinho. É roda viva que nos leva do chão ao topo em um segundo. Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. Em outros, baila “Macarena” com quadril e riso frouxos. Nos poemas mais refinados e nas coreografias extravagantes, aprendamos com a música que viver é alternar leveza e vigor. É saber mesclar a astúcia dos repentes improvisados com a minúcia das peças eruditas. É se ver no olho do furacão e segurar o Tchan pra não sucumbir. É ajustar o passo na cadência do tempo que voa, amor, escorre pelas mãos. Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, até quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não para.
Então vem, vamos embora que esperar não é saber. Vamos viver tudo que há pra viver, amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Corra. Afeto não é como o trem das onze que oferece aos descuidados, na manhã do dia seguinte, uma chance de voltar a Jaçanã. Pegue logo o Calhambeque ou o Camaro amarelo e acelere para não perder nenhum pedaço do trajeto. A vida tem pressa para acontecer. E acontece num piscar de olhos. Dá vontade de pedir que espere um pouco para a gente respirar. Por favor, vá devagar! Devagar, devagarinho. Despacito.
Mas nadar contra a corrente não é pedido que se faça. A rota segue, sem pausa, pra mim, pra você, pras preparadas, as popozudas, o baile todo. Não adianta ir negando as aparências, disfarçando as evidências… burrice viver entre tapas e beijos com o calendário. Passei anos apaixonada pelo passado, mas não era amor. Era cilada. No fim das contas, estou cansada de saber que o tempo é mais aliado que inimigo. Eu reclamo só pra contrariar. Faz parte do meu show. Depois de décadas ampliando o repertório e desbravando melodias, cada nota me ensinou de tudo um pouco. Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito pra contar…, mas vou resumir. Da vitrola da casa da minha avó aos fones de última geração do meu aparelho portátil, aprendi que a gente tem que olhar pra frente. Caminhando e cantando e seguindo a canção.
BITTAR, Larissa. Crônicas. Revista Bula. Disponível em: https://www.revistabula.com/9710-se-voce-e-feitode-musica-este-texto-e-pra-voce/. Acesso em: 20 maio 2023.
TEXTO II
“[…] Na última semana de dezembro, ainda em 2022, eu e Dr. De Dérson tivemos um encontro memorável na enfermaria 351 do Hospital M’Boi Mirim, em São Paulo. Deixou saudade e, por isso, compartilho com vocês nesse comecinho de 2023.
Entramos na enfermaria tocando ‘Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá’. Lucas, 15, que estava deitado com o pé engessado, prontamente se manifestou.
– Não fala de pé que eu lembro que meu pé está quebrado, gente.
– Poxa, Lucas, desculpa, foi mancada nossa – respondi constrangido.
– Não fala em mancada, pois eu estou mancando – retrucou o rapaz.A situação piorou e De Dérson entrou na conversa:
– Se manca, Dr. Cavaco. Toca outra música aí e muda de assunto!
– ‘Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, ruim da cabeça, ou doente do pé…’Lucas caiu no riso. Não era possível que eles seguissem com aquela palhaçada.
– Toca outra música, tenho fé que vocês conseguem!
– ‘Andar com fé eu vou, pois a fé não costuma falhar’ – emendei essa e Lucas gargalhou.
– Eu não estou podendo andar, gente! O que é isso, vocês não acertam nunca! […].”MACHADO, Anderson. Música dos pés à cabeça. Doutores da alegria, 30 jan. 2023. Disponível em: https://doutoresdaalegria.org.br/blog/musica-dos-pes-a cabeca/. Acesso em: 20 maio 2023.