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A viagem da cozinheira lagrimosa
Mia Couto
Antunes Correia e Correia, sargento colonial em tempo de guerra. Se o nome era redundante, o homem estava reduzido a metades. Pisara um chão traiçoeiro e subira pelas alturas para esses lugares onde se deixa a alma e se trazem eternidades. Correia não deixou nem trouxe, incompetente até para morrer. A mina que explodira era pessoal.
Mas ele, tão gordo, tão abastado de volume, necessitava de duas explosões.
― Estou morto por metade. Fui visitado apenas por meia-morte.
Perdera a vida só num olho, um lado da cara todo desfacelado. O olho dele era fazconta um peixe morto no aquário do seu rosto. Mas o sargento era tão apático, tão sem meximento, que não se sabia se de vidro era todo ele ou apenas o olho. O Correia perdera interesses na vida: ser ou não ser tanto lhe desfazia. As mulheres passavam e ele nada. E ladainhava: “estou morto por metade”.
Agora, reformado, sozinho, mutilado de guerra e incapacitado de paz, Antunes Correia e Correia tomava conta de suas lembranças. E se admirava do fôlego da memória. Mesmo sem o outro hemisfério não havia momento que lhe escapasse nessa caçada ao passado. Das duas uma: ou minha vida foi muito enorme ou ela fugiu-me toda para o lado direito da cabeça. Para as recordações virem à tona ele inclinava o pescoço.
― Assim escorregavam diretamente do coração, dizia ele.
Felizminha era a empregada do sargento. Trabalhava para ele desde a sua chegada ao bairro militar. Nos vapores da cozinha a negra Felizminha arregaçava os olhos. Enxugava a lágrima, sempre tarde. Já a gota tombara na panela. Era certo e havido: a lágrima se adicionando nas comidas. Tanto que a cozinheira nem usava tempero nem sal. O sargento provava a comida e se perguntava porquê tão delicados sabores.
― É comida temperada a tristeza.
Era a invariável resposta de Felizminha. A empregada suspirava: “ai, se pudesse ser outra, uma alguém”. Poupava alegrias, poucas que eram.
― Quero guardar contentamento para gastar depois, quando for mais velhinha. Certa noite, o patrão entrou na cozinha, arrastando seu peso. Esbarrou com a penumbra.
― Você não quer mais iluminação na porcaria desta cozinha?
― Não, eu gosto assim.
O destino não lhe encomendou mais: apenas esse encontro de duas meias vidas. Correia e Correia sabe quanto deve à mulher que o serve. Logo após o acidente, ninguém entendia as suas pastosas falas. Carecia-se era de serviço de mãe para amparar aquele branco mal-amanhado, aquele resto de gente. Agora ele olha para ela como se estivesse ainda em convalescença. O roçar da capulana dela amansa velhos fantasmas.
― Me esclareça uma coisa, Felizminha: porquê essa choradice, todos os dias?
― Eu só choro para dar mais sabor aos meus cozinhados.
― Ainda eu tenho razões para tristezas, mas você…
― Eu de onde vim tenho lembrança é de coqueiros, aquele marejar das folhas faz conta a gente está sempre rente ao mar. É só isso, patrão.
― Mas você, minha velha, sempre triste. Quer aumento no dinheiro?
― Dinheiro, meu patrão, é como lâmina… corta dos dois lados. Quando contamos as notas se rasga a nossa alma. A gente paga o quê com o dinheiro? A vida nos está cobrando não o papel mas a nós, próprios. A nota quando sai já a nossa vida foi. O senhor se encosta nas lembranças. Eu me amparo na tristeza para descansar.
A gorda cozinheira surpreendeu o patrão. Lhe atirou, a queimar-lhe a roupa:
― Tenho ideia para o senhor salvar o resto do seu tempo.
― Já só tenho metade de vida, Felizminha.
― A vida não tem metades. É sempre inteira… Ela desenvolveu-se: o português que convidasse uma senhora, dessas para lhe acompanhar. O sargento ainda tinha idade combinando bem com corpo. Até há essas da vida, baratinhas, mulheres muito descartáveis. Estou-lhe a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo.
Correia e Correia semissorriu, pensageiro. Um dia o militar saiu e andou a tarde toda fora. Chegou à casa, eufórico, se encaminhou para a cozinha. E declarou com pomposidade:
― Felizminha: esta noite ponha mais um prato.
A alma de Felizminha se enfeitou. Esmerou na arrumação da sala, colocou uma cadeira do lado direito do sargento para que ele pudesse apreciar por inteiro a visitante. Na cozinha apurou a lágrima destinada a condimentar o repasto.
Aconteceu, porém, que não veio ninguém. O lugar na mesa permaneceu vazio. Essa e todas as outras vezes. Única mudança no cenário: o assento que competia à invindável visita passava da direita para a esquerda, esse lado em que não havia mundo para o sargento Correia.
Felizminha duvidava: essas que o patrão convidava existiam, verídicas e autênticas?
Até que, uma noite, o sargento chamou a cozinheira. Pediu-lhe que tomasse o lugar das falhadas visitadoras. Felizminha hesitou. Depois, vagarosa, deu um jeito para caber na cadeira.
― Decidi me ir embora.
Felizminha não disse nada. Esperou o que restava para ser dito.
― E quero que você venha comigo.
― Eu, patrão? Eu não saio da minha sombra.
― Vens e vês o mundo.
― Mas ir lá fazer o quê, nessa terra…
― Ninguém te vai fazer mal, eu prometo.
Daí em diante, ela se preparou para a viagem. Animada com a ideia de ver outros lugares? Aterrada com a ideia de habitar terra estranha, lugar de brancos? Nem rosto nem palavra da cozinheira revelavam a substância de sua alma. O sargento provava a refeição e não encontrava mudança. Sempre o mesmo sal, sempre a mesma delicadeza de sabor. No dia acertado, o militar acotovelou a penumbra da cozinha:
― Venha, faça as malas.
Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança. Então o sargento, perante o público, deu-lhe a mão. Nem se entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos envergonhados.
― Vamos, disse ele.
Ela olhou os céus, receosa por, daí a um pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha, mas para seu espanto Correia não tomou a direção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e perguntou:
― Para que lado fica essa terra dos coqueiros?
(Adaptado de COUTO, Mia. A viagem da cozinheira lagrimosa. In: Contos do nascer da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 17-24). Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13297.pdf.